Sábado, 17 de setembro de 2011.
Pi pi pi pi pi pi pi pi pi pi pi
pi pi pi...
– PUTAQUEOPARIU!!!, ninguém
merece acordar às cinco da manhã nas férias, CARÁLEO!
E foi assim, narcoléptico leitor,
o nosso plácido despertar naquele sábado chuvoso na capital da Baviera. Mas
nosso mau-humor matutino rapidamente foi dissipado pela lembrança do que aquele
dia vinha nos trazer: ia começar a OKTOBERFEST!
Sim, invejoso leitor, o maior e mais famoso festival de cerveja do mundo,
em sua 178ª edição. “Mas porque acordar tão cedo, se a festa só começa ao
meio-dia?” – me perguntará o limitado leitor. Eu poderia responder que é para
dar tempo de beber mais, mas não estaria sendo honesto. Acordamos nesse horário
porque era o primeiro dia da Oktober,
e se já é difícil conseguir um bom lugar nas tendas nos dias “normais”, imagine
no primeiro dia, quando a sede está em seu grau mais agudo.
Nos aprontamos e, sem
café-da-manhã (nem cerveja!), fomos para a estação. Lá nos juntamos a centenas
de adolescentes loiros, barulhentos e trajados a rigor (nos moldes bávaros,
lógico), que provavelmente passaram a noite inteira bebendo e estavam ali
virados, às 05:45 da manhã, prontos para irem pra Oktoberfest beber ainda mais. Ah! a juventude... QUE DEUS CONSERVE
SEUS FÍGADOS!!! Mas então, nos juntamos à turba e nem nos preocupamos em olhar
o itinerário: era só seguir o fluxo. Desembarcamos na estação de Theresienwiese e, sempre seguindo o
fluxo, nos deparamos com isso:
Tá, minucioso leitor, essa foto
não é do momento em que chegamos, e sim do momento em que deixamos a área do Theresienwiese (é o lugar onde ocorre a
festa), mas o que importa é que foi isso aí que vimos. E vê se não enche o
saco, chatão! Por falar em Theresienwiese,
deixa eu contar a historinha de como surgiu a Oktoberfest...
Era uma vez um príncipe da
Baviera que se casou com uma princesa em outubro de 1810. Fizeram uma corrida
de cavalos para comemorar o casório, e assim nasceu a Oktoberfest. Ano após ano eles celebravam essa data. O príncipe em
questão era o futuro rei Ludwig I, e a princesa era Teresa de
Saxe-Hildburghausen (daí o local do casamento se chamar Theresienwiese, em homenagem à princesa).
– Mas e a cerveja??? – me
perguntará o sedento leitor. Bom, é certo que eles devem ter bebido muita
cerveja nessa festa, mas a Oktoberfest
só ganhou esse viés cervejístico com o passar do tempo.
– Mas, se é Oktoberfest, por que atualmente ela começa em setembro??? – Porra!
Tá foda hoje, hein! Deveria mandar o irritante e preguiçoso leitor procurar
essas informações por conta própria, mas discorrer sobre isso me proporciona
grande deleite, então vamos lá: Originalmente a festa ocorria em outubro
(outubro... festa... oktoberfest...
Deu pra assimilar? Deu, né, pervertido!?), só que em outubro lá faz uma friaca
medonha, o que dificulta o ato de tomar cerveja, principalmente ao ar livre. Aí
os caras puxaram o início da festa para setembro, deixando o encerramento para
o primeiro fim-de-semana de outubro. E antes que o leitor mais chato atento
me encha o saco pergunte, já digo logo que a diferença entre o número de
edições (178) e o número de anos decorridos desde a primeira Oktober (201) sé dá por conta de guerras
que inviabilizaram a festa em alguns anos, sobretudo as duas Grandes
Guerras. Agora bora pra festa!
A entrada do Theresienwiese!!! Essa foto foi feita quando a gente estava indo embora, mas tá valendo. |
Chegamos na entrada da bagaça e
junto com a gente chegou a chuva. PÔTAQUEUPARIUUUU!!! Deixa a gente correr
procurando algum lugar onde não nos molhássemos muito. O prezado leitor
já viu galinha tomando chuva? Ela estica o pescoço pra cima e aponta o rabo pra
baixo pra água escorrer melhor, igual um urutau no toco, e fica lá com uma cara
de desconsolo de causar dó às pedras. Pois é, foi assim que ficamos, sob uma
tapagem ínfima de uma barraquinha de bugigangas, maldizendo São Pedro. Mal
sabíamos que naquele mesmo dia ainda maldiríamos o mesmo São Pedro, só que por
conta do sol. Mas isso é história para daqui a pouco...
Tipo a gente na chuva |
Para o ignorante leitor: um urutau no toco. |
Não sei se foi pelas injúrias ao
santo, o fato é que a chuva rapidamente diminuiu até parar. Então saímos do
nosso poleiro e fomos explorar o lugar. Andamos pra lá, andamos pra cá, e de
repente nos deparamos com a imponente estátua da Bavária, no alto de uma
colina. Não, leitor, não estou falando de uma garrafa gigante de cerveja. A
Bavária em questão é a personificação feminina do antigo reino e atualmente
estado da Baviera, ou Bavária. Mas então, nos deparamos com a estátua e nesse
momento “alguma coisa aconteceu no meu coração”. Não sei explicar direito... Só
sei que alguma memória genética ancestral deve ter sido disparada ante a visão daquela
estátua. Só isto explicaria a sensação arrebatadora de pertencimento e
familiaridade àquele ambiente e àquelas vestes (sim, leitor, estávamos nós
também vestidos como legítimos bávaros de C&A). Sem falar da minha devoção
quase religiosa ao sacrossanto fermentado de cereais malteados (cerveja,
mané!). Ali, naquela hora, eu era um bávaro, tinha certeza disso, ainda que
meus ascendentes europeus fossem sabidamente italianos. Meses depois dessa
experiência mística, já no Brasil, tive a confirmação factual daquilo que já
sentia na alma: relendo o livro Os Pompermayers na Itália, Brasil e Argentina - uma história de sete séculos, de autoria dos meus
primos Malori José Pompermayer e Glaura Vasques de Miranda, onde eles narram suas pesquisas sobre as
origens e a história da família Pompermayer, descobri que a grande maioria das
famílias da região do Trentino, no norte da Itália, entre elas os
Stelzer e os Pompermayer, é oriunda das regiões da Bavária e da Boêmia.
Captou, leitor??? BAVÁRIA E BOÊMIA!!! Alemanha e República Checa! Dois dos
lugares onde mais se entende, mais se produz e mais se consome as melhores
cervejas do mundo!!! Agora tudo faz sentido!!!
Josi e a Bavária |
Eu e a Bavária. Sim, eu era um bávaro preto. |
Apesar de ter sido de grande
intensidade, esse momento extático teve de ser breve, pois ainda tínhamos que
achar a tenda Schottenhamel e entrar
na fila para conseguirmos nosso lugar na festa. Aqui vale ressaltar que na Oktoberfest existem várias tendas (umas
16, eu acho), dentro das quais ocorre a festa propriamente dita. Cada tenda
serve a cerveja de apenas uma cervejaria e, para serem servidas, as pessoas têm
que estar sentadas. É isso aí, leitor: a galera lá bebe sentada. E como em pé
ninguém é servido, o leitor pode fazer idéia de quão disputados são os
assentos. Outra consideração a ser feita é que a Schottenhamel é a tenda onde o prefeito de Munique dá início à
festa, abrindo o primeiro barril de cerveja ao meio-dia em ponto do primeiro
sábado. Portanto, no primeiro dia da Oktoberfest,
a Schottenhamel deve ser o lugar
mais disputado do mundo. Pena que nós, cervejeiros de primeira viagem, fomos
descobrir isto da pior maneira possível...
Devia ser umas 07:00 da manhã e
lá estávamos nós defronte a entrada da bendita tenda. A informação que tínhamos
era de que as portas se abririam às 09:00. Só precisávamos sobreviver por duas
horas em pé, no meio de uma turba de pirralhos barulhentos e fumantes.
PUTAMERDA! Os caras são insanos! Acendem um novo cigarro com a guimba do
anterior! O tempo foi passando e a quantidade de pessoas na fila aumentando,
até que chegou tanta gente que já não havia mais fila e sim um amontoado de
gente se espremendo: viva a organização germânica! De tempos em tempos
apareciam uns seguranças de três metros de altura por dois de largura,
empurrando as pessoas enquanto gritavam coisas incompreensíveis, cuspindo
milhares de perdigotos na fuça dos que estavam mais à frente. Cara, na boa,
deve ser a pior coisa do mundo tomar uma descompostura de um alemão nervoso!
Que idioma escroto, pqp! Dois alemães conversando amigavelmente se assemelha a
uma briga entre cachorros raivosos. Sabe aquela cena clássica do filme A queda, as últimas horas de Hitler (mais especificamente a partir de 1'12")?
Então...
Até que finalmente abriram as
portas da esperança, digo, as portas da tenda... e deixaram entrar meia dúzia
de pessoas. Daí fecharam de novo e os seguranças deram um “espalha” caprichado
em quem não havia conseguido entrar. Nós não entendemos nada e ficamos por ali,
com cara de ponto de interrogação, até que um brasileiro destruiu todos os
nossos sonhos ao nos explicar que não havia mais lugares na Schottenhamel... CARÁLEO!!! Nós não
viajamos trocentos milhões de anos-luz, acordamos às 05:00 da manhã, tomamos
chuva e ficamos na fila, em pé, respirando uma caralhada de substâncias
cancerígenas por quase cinco horas pra que um chucrute escroto e mal-educado
viesse nos gritar na cara que não entraríamos! Isso não iria ficar assim, de
jeito nenhum!!! Estávamos dispostos a procurar a embaixada brasileira ou, pelo
menos, o consulado brasileiro em Munique para provocarmos um incidente
diplomático internacional. Eles iriam ver com quem estavam se metendo. NÓS
SOMOS BRASILEIROS, PORRAAAAA!
Bom, na verdade estávamos impotentes diante
daquela situação e, passada a ira inicial, enfiamos o rabo entre as pernas e
fomos procurar lugar em outra tenda. Essa tarefa não foi mais fácil que a
anterior, devido ao adiantado da hora, de modo que rodamos pra cima e pra baixo
mendigando um lugar nas tendas, mas obtínhamos sempre a mesma resposta que
Maria e José receberam ao procurar guarita em Belém na época do recenseamento.
E tal qual a Sagrada Família tivemos que procurar um abrigo improvisado. Foi
assim que nos sentamos desconsolados aos pés da estátua da Bavária...
Ficamos ali, remoendo nossa
raiva, por um bom tempo. Não éramos os únicos: uma multidão se encontrava na
mesma situação que nós. Até que começou um rebuliço nas ruas do Theresienwiese. Era o desfile que trazia
a cerveja para a festa, e ela chegava em barris sobre carroças enfeitadas
puxadas por cavalos, precedida por fanfarras bávaras tocando musiquinhas
típicas. Cada cervejaria tinha a sua carroça e a sua fanfarra. O desfile é
legalzinho, mas estávamos muito emputecidos para curti-lo. Por último veio o
prefeito de Munique, que se dirigiu à Schottenhamel
para iniciar a festa. Eu não vi, PORQUE NÃO ME DEIXARAM ENTRAR, mas conta-se que
o prefeito veste um avental, empunha um formão e um martelo e abre o primeiro barril da festa ao meio-dia em
ponto, dizendo a famosa frase “O’zapft
is!” (Está batido!). Só então a cerveja pode começar a ser servida nas
tendas. Como disse anteriormente, nós não vimos nada disso. Só ouvimos a
gritaria dentro das tendas, então pudemos inferir que a coisa tinha acontecido.
Ficamos ali de bobeira por mais
um tempo e, por mim, teríamos ido embora. Mas Josi insistiu em rodarmos mais
uma vez pelas tendas. De muita má vontade, debaixo de um sol impiedoso de
meio-dia (Ah! São Pedro!...), aceitei a proposta e me deixei ser guiado por
Josi. Rodamos por umas 150 tendas e todas estavam entupidas de gente. Josi já
esmorecia em sua empreitada quando viu um espaço vazio num banco de uma mesa
colocada num biergarten (biergarten aqui nada mais é que um
espaço ao ar livre anexo às tendas. Como não cabe todo mundo do lado de dentro
eles improvisam isso do lado de fora) e perguntou se estava vago. Na verdade
ela apontou para o lugar e fez a cara do Gato de Botas do Shrek. Foi aí que a fraternidade universal que une os seres humanos
bebedores de cerveja se manifestou e o pessoal da mesa se reorganizou para
permitir que nos acomodássemos. Às 12:40 a Oktoberfest,
enfim, iria começar para nós! OBRIGADO, SENHOR JESUS!!!
Na nossa mesa, no biergarten da tenda da cervejaria Hacker-Pschorr (a cerveja servida era muito boa!!!), havia um casal de
suíços, um casal de espanhóis, um americano e um pessoalzinho com quem não
chegamos a travar contato. E tinha também uma porra de um sol absurdo bem na
nossa cara, mas não dava pra reclamar muito depois do que passamos. De início
ficamos ali, olhando um pro outro com cara de paisagem, e o pessoal também não
colaborava muito. O americano, então... tinha mó cara de psico, mal encarado e
quieto. Não demorou muito e passou uma garçonete carregando 10 maβ
(mass, caneca de 1 litro) cheios de cerveja. Quase arrancamos duas canecas das
mãos dela (10€ cada) e mergulhamos lá dentro. Quando chegamos à metade das
canecas já estávamos tchucos (lembre-se, leitor, que estávamos em jejum desde a
noite anterior), e aí ocorreu um milagre semelhante ao ocorrido após o
Pentecostes no Cenáculo (Senhor, eu juro que não digo isso por maldade, é só
para ilustrar a cena): nós passamos a entender os suíços, os espanhóis e o
americano, bem como eles nos entendiam perfeitamente. Foi assim que pudemos
descobrir que o espanhol (entendia-o melhor quando ele falava em inglês do que
em espanhol!!!) trabalhava na Telefônica e que, não raro, viajava a trabalho
para São Paulo; que o americano, o Mike, era gente boa demais, trabalhava na
área de processamento de dados de empresas que atuam na reconstrução de países
destruídos por guerras (estava vindo do Afeganistão), e que sua mulher era
bielorrussa e chegaria às 17:00 não sei de onde com os sogros dele, diretamente
para uma das tendas, onde tinha lugares reservados; descobrimos também que os
Suíços eram da Suíça \o/ (é, eles não falavam muito...).
Um lugar ao sol, LITERALMENTE!!! |
Prost! |
Nós e o Mike: a cerveja pulverizando a barreira idiomática. |
Nós, o Mike e o casal espanhol. Saca só minha cara sã. |
Quando vimos que o bicho tava pegando
pro nosso lado resolvemos pedir algo pra comer: linguiça branca, chucrute, frango
frito e batata frita. Isso nos deu uma sobrevida e continuamos ali, bebendo,
conversando e rindo. Quatro litros de cerveja depois do início da festa, nos
aproveitamos que o Mike estava de saída para encontrar a família e nos
despedimos dos nossos novos amigos. Fomos andar um pouco para ver se o fígado
metabolizava o álcool mais rapidamente.
Não sei se já falei, mas tem uma penca
de barraquinhas nas ruas do Theresienwiese,
onde vendem toda e qualquer buginganga possível e imaginável alusiva à
festa. Também vendem comida, e há barraquinhas com aqueles joguinhos
característicos de parques de diversão. Por falar em parque de diversão, tem um
gigantesco na área da festa e eu queria por toda maneira ir num brinquedo que é
um elevador que sobe, sobe, sobe e depois despenca lá de cima, mas Josi
embarreirou com medo de eu vomitar nas pessoas. Então fomos tentar algo menos
radical: derrubar latas com bolas de meia. Lógico que não acertamos merda
nenhuma.
O inocente leitor acha mesmo que eu iria acertar alguma coisa!?! |
Depois Josi quis comer algo, e
enquanto ela se entendia com a mocinha da barraca eu fiquei olhando o movimento
e pensando em como aquilo tudo era surreal para nós até outro dia. Nisso eu
vejo, mesmo com a visão um tanto prejudicada como e porque o leitor bem pode
imaginar, um “troço” diferente em meio aos entulhos da sarjeta. 15 euros!!!
Achei 15 euros no chão. Com toda a rapidez, desenvoltura e discrição que um
bêbado tem eu me abaixei e peguei o dinheiro. Já dava pra tomar mais uma caneca
e meia de cerveja!
Saindo dali nos dirigimos para a
estátua da Bavária, e no caminho passamos por vários manés bêbados passando mal
e sendo socorridos pelo SAMU local. Ficamos rindo e zoando deles, ainda que
estivéssemos em vias de nos tornarmos os próximos. Aos pés da estátua, assim
como outras centenas de bêbados, arrumamos um lugar na grama e bodamos ali sei
lá por quanto tempo. Quando acordamos já estava escurecendo e resolvemos ir
embora.
Ssssssóbrio! |
Foi mal, Ceres. |
Chegando ao
hotel demos de cara com a Ceres e pedimos desculpas (simbolizadas pela flor
artificial que eu ganhei na barraquinha do jogo das latas) pelo bolo da noite
anterior. Subimos, tomamos banho e o mundo acabou até a manhã seguinte.