– PUTAQUEOPARIU!!!, ninguém
merece acordar às cinco da manhã nas férias, CARÁLEO!
E foi assim, narcoléptico leitor,
o nosso plácido despertar naquele sábado chuvoso na capital da Baviera. Mas
nosso mau-humor matutino rapidamente foi dissipado pela lembrança do que aquele
dia vinha nos trazer: ia começar a OKTOBERFEST!
Sim, invejoso leitor, o maior e mais famoso festival de cerveja do mundo,
em sua 178ª edição. “Mas porque acordar tão cedo, se a festa só começa ao
meio-dia?” – me perguntará o limitado leitor. Eu poderia responder que é para
dar tempo de beber mais, mas não estaria sendo honesto. Acordamos nesse horário
porque era o primeiro dia da Oktober,
e se já é difícil conseguir um bom lugar nas tendas nos dias “normais”, imagine
no primeiro dia, quando a sede está em seu grau mais agudo.
Nos aprontamos e, sem
café-da-manhã (nem cerveja!), fomos para a estação. Lá nos juntamos a centenas
de adolescentes loiros, barulhentos e trajados a rigor (nos moldes bávaros,
lógico), que provavelmente passaram a noite inteira bebendo e estavam ali
virados, às 05:45 da manhã, prontos para irem pra Oktoberfest beber ainda mais. Ah! a juventude... QUE DEUS CONSERVE
SEUS FÍGADOS!!! Mas então, nos juntamos à turba e nem nos preocupamos em olhar
o itinerário: era só seguir o fluxo. Desembarcamos na estação de Theresienwiese e, sempre seguindo o
fluxo, nos deparamos com isso:
Tá, minucioso leitor, essa foto
não é do momento em que chegamos, e sim do momento em que deixamos a área do Theresienwiese (é o lugar onde ocorre a
festa), mas o que importa é que foi isso aí que vimos. E vê se não enche o
saco, chatão! Por falar em Theresienwiese,
deixa eu contar a historinha de como surgiu a Oktoberfest...
Era uma vez um príncipe da
Baviera que se casou com uma princesa em outubro de 1810. Fizeram uma corrida
de cavalos para comemorar o casório, e assim nasceu a Oktoberfest. Ano após ano eles celebravam essa data. O príncipe em
questão era o futuro rei Ludwig I, e a princesa era Teresa de
Saxe-Hildburghausen (daí o local do casamento se chamar Theresienwiese, em homenagem à princesa).
– Mas e a cerveja??? – me
perguntará o sedento leitor. Bom, é certo que eles devem ter bebido muita
cerveja nessa festa, mas a Oktoberfest
só ganhou esse viés cervejístico com o passar do tempo.
– Mas, se é Oktoberfest, por que atualmente ela começa em setembro??? – Porra!
Tá foda hoje, hein! Deveria mandar o irritante e preguiçoso leitor procurar
essas informações por conta própria, mas discorrer sobre isso me proporciona
grande deleite, então vamos lá: Originalmente a festa ocorria em outubro
(outubro... festa... oktoberfest...
Deu pra assimilar? Deu, né, pervertido!?), só que em outubro lá faz uma friaca
medonha, o que dificulta o ato de tomar cerveja, principalmente ao ar livre. Aí
os caras puxaram o início da festa para setembro, deixando o encerramento para
o primeiro fim-de-semana de outubro. E antes que o leitor mais chato atento
me encha o saco pergunte, já digo logo que a diferença entre o número de
edições (178) e o número de anos decorridos desde a primeira Oktober (201) sé dá por conta de guerras
que inviabilizaram a festa em alguns anos, sobretudo as duas Grandes
Guerras. Agora bora pra festa!
A entrada do Theresienwiese!!! Essa foto foi feita quando a gente estava indo embora, mas tá valendo.
Chegamos na entrada da bagaça e
junto com a gente chegou a chuva. PÔTAQUEUPARIUUUU!!! Deixa a gente correr
procurando algum lugar onde não nos molhássemos muito. O prezado leitor
já viu galinha tomando chuva? Ela estica o pescoço pra cima e aponta o rabo pra
baixo pra água escorrer melhor, igual um urutau no toco, e fica lá com uma cara
de desconsolo de causar dó às pedras. Pois é, foi assim que ficamos, sob uma
tapagem ínfima de uma barraquinha de bugigangas, maldizendo São Pedro. Mal
sabíamos que naquele mesmo dia ainda maldiríamos o mesmo São Pedro, só que por
conta do sol. Mas isso é história para daqui a pouco...
Tipo a gente na chuva
Para o ignorante leitor: um urutau no toco.
Não sei se foi pelas injúrias ao
santo, o fato é que a chuva rapidamente diminuiu até parar. Então saímos do
nosso poleiro e fomos explorar o lugar. Andamos pra lá, andamos pra cá, e de
repente nos deparamos com a imponente estátua da Bavária, no alto de uma
colina. Não, leitor, não estou falando de uma garrafa gigante de cerveja. A
Bavária em questão é a personificação feminina do antigo reino e atualmente
estado da Baviera, ou Bavária. Mas então, nos deparamos com a estátua e nesse
momento “alguma coisa aconteceu no meu coração”. Não sei explicar direito... Só
sei que alguma memória genética ancestral deve ter sido disparada ante a visão daquela
estátua. Só isto explicaria a sensação arrebatadora de pertencimento e
familiaridade àquele ambiente e àquelas vestes (sim, leitor, estávamos nós
também vestidos como legítimos bávaros de C&A). Sem falar da minha devoção
quase religiosa ao sacrossanto fermentado de cereais malteados (cerveja,
mané!). Ali, naquela hora, eu era um bávaro, tinha certeza disso, ainda que
meus ascendentes europeus fossem sabidamente italianos. Meses depois dessa
experiência mística, já no Brasil, tive a confirmação factual daquilo que já
sentia na alma: relendo o livro Os Pompermayers na Itália, Brasil e Argentina - uma história de sete séculos, de autoria dos meus
primos Malori José Pompermayer e Glaura Vasques de Miranda, onde eles narram suas pesquisas sobre as
origens e a história da família Pompermayer, descobri que a grande maioria das
famílias da região do Trentino, no norte da Itália, entre elas os
Stelzer e os Pompermayer, é oriunda das regiões da Bavária e da Boêmia.
Captou, leitor??? BAVÁRIA E BOÊMIA!!! Alemanha e República Checa! Dois dos
lugares onde mais se entende, mais se produz e mais se consome as melhores
cervejas do mundo!!! Agora tudo faz sentido!!!
Josi e a Bavária
Eu e a Bavária. Sim, eu era um bávaro preto.
Apesar de ter sido de grande
intensidade, esse momento extático teve de ser breve, pois ainda tínhamos que
achar a tenda Schottenhamel e entrar
na fila para conseguirmos nosso lugar na festa. Aqui vale ressaltar que na Oktoberfest existem várias tendas (umas
16, eu acho), dentro das quais ocorre a festa propriamente dita. Cada tenda
serve a cerveja de apenas uma cervejaria e, para serem servidas, as pessoas têm
que estar sentadas. É isso aí, leitor: a galera lá bebe sentada. E como em pé
ninguém é servido, o leitor pode fazer idéia de quão disputados são os
assentos. Outra consideração a ser feita é que a Schottenhamel é a tenda onde o prefeito de Munique dá início à
festa, abrindo o primeiro barril de cerveja ao meio-dia em ponto do primeiro
sábado. Portanto, no primeiro dia da Oktoberfest,
a Schottenhamel deve ser o lugar
mais disputado do mundo. Pena que nós, cervejeiros de primeira viagem, fomos
descobrir isto da pior maneira possível...
Devia ser umas 07:00 da manhã e
lá estávamos nós defronte a entrada da bendita tenda. A informação que tínhamos
era de que as portas se abririam às 09:00. Só precisávamos sobreviver por duas
horas em pé, no meio de uma turba de pirralhos barulhentos e fumantes.
PUTAMERDA! Os caras são insanos! Acendem um novo cigarro com a guimba do
anterior! O tempo foi passando e a quantidade de pessoas na fila aumentando,
até que chegou tanta gente que já não havia mais fila e sim um amontoado de
gente se espremendo: viva a organização germânica! De tempos em tempos
apareciam uns seguranças de três metros de altura por dois de largura,
empurrando as pessoas enquanto gritavam coisas incompreensíveis, cuspindo
milhares de perdigotos na fuça dos que estavam mais à frente. Cara, na boa,
deve ser a pior coisa do mundo tomar uma descompostura de um alemão nervoso!
Que idioma escroto, pqp! Dois alemães conversando amigavelmente se assemelha a
uma briga entre cachorros raivosos. Sabe aquela cena clássica do filme A queda, as últimas horas de Hitler (mais especificamente a partir de 1'12")?
Então...
Até que finalmente abriram as
portas da esperança, digo, as portas da tenda... e deixaram entrar meia dúzia
de pessoas. Daí fecharam de novo e os seguranças deram um “espalha” caprichado
em quem não havia conseguido entrar. Nós não entendemos nada e ficamos por ali,
com cara de ponto de interrogação, até que um brasileiro destruiu todos os
nossos sonhos ao nos explicar que não havia mais lugares na Schottenhamel... CARÁLEO!!! Nós não
viajamos trocentos milhões de anos-luz, acordamos às 05:00 da manhã, tomamos
chuva e ficamos na fila, em pé, respirando uma caralhada de substâncias
cancerígenas por quase cinco horas pra que um chucrute escroto e mal-educado
viesse nos gritar na cara que não entraríamos! Isso não iria ficar assim, de
jeito nenhum!!! Estávamos dispostos a procurar a embaixada brasileira ou, pelo
menos, o consulado brasileiro em Munique para provocarmos um incidente
diplomático internacional. Eles iriam ver com quem estavam se metendo. NÓS
SOMOS BRASILEIROS, PORRAAAAA!
Bom, na verdade estávamos impotentes diante
daquela situação e, passada a ira inicial, enfiamos o rabo entre as pernas e
fomos procurar lugar em outra tenda. Essa tarefa não foi mais fácil que a
anterior, devido ao adiantado da hora, de modo que rodamos pra cima e pra baixo
mendigando um lugar nas tendas, mas obtínhamos sempre a mesma resposta que
Maria e José receberam ao procurar guarita em Belém na época do recenseamento.
E tal qual a Sagrada Família tivemos que procurar um abrigo improvisado. Foi
assim que nos sentamos desconsolados aos pés da estátua da Bavária...
Ficamos ali, remoendo nossa
raiva, por um bom tempo. Não éramos os únicos: uma multidão se encontrava na
mesma situação que nós. Até que começou um rebuliço nas ruas do Theresienwiese. Era o desfile que trazia
a cerveja para a festa, e ela chegava em barris sobre carroças enfeitadas
puxadas por cavalos, precedida por fanfarras bávaras tocando musiquinhas
típicas. Cada cervejaria tinha a sua carroça e a sua fanfarra. O desfile é
legalzinho, mas estávamos muito emputecidos para curti-lo. Por último veio o
prefeito de Munique, que se dirigiu à Schottenhamel
para iniciar a festa. Eu não vi, PORQUE NÃO ME DEIXARAM ENTRAR, mas conta-se que
o prefeito veste um avental, empunha um formão e um martelo e abre o primeiro barril da festa ao meio-dia em
ponto, dizendo a famosa frase “O’zapft
is!” (Está batido!). Só então a cerveja pode começar a ser servida nas
tendas. Como disse anteriormente, nós não vimos nada disso. Só ouvimos a
gritaria dentro das tendas, então pudemos inferir que a coisa tinha acontecido.
Ficamos ali de bobeira por mais
um tempo e, por mim, teríamos ido embora. Mas Josi insistiu em rodarmos mais
uma vez pelas tendas. De muita má vontade, debaixo de um sol impiedoso de
meio-dia (Ah! São Pedro!...), aceitei a proposta e me deixei ser guiado por
Josi. Rodamos por umas 150 tendas e todas estavam entupidas de gente. Josi já
esmorecia em sua empreitada quando viu um espaço vazio num banco de uma mesa
colocada num biergarten (biergarten aqui nada mais é que um
espaço ao ar livre anexo às tendas. Como não cabe todo mundo do lado de dentro
eles improvisam isso do lado de fora) e perguntou se estava vago. Na verdade
ela apontou para o lugar e fez a cara do Gato de Botas do Shrek. Foi aí que a fraternidade universal que une os seres humanos
bebedores de cerveja se manifestou e o pessoal da mesa se reorganizou para
permitir que nos acomodássemos. Às 12:40 a Oktoberfest,
enfim, iria começar para nós! OBRIGADO, SENHOR JESUS!!!
Na nossa mesa, no biergarten da tenda da cervejaria Hacker-Pschorr (a cerveja servida era muito boa!!!), havia um casal de
suíços, um casal de espanhóis, um americano e um pessoalzinho com quem não
chegamos a travar contato. E tinha também uma porra de um sol absurdo bem na
nossa cara, mas não dava pra reclamar muito depois do que passamos. De início
ficamos ali, olhando um pro outro com cara de paisagem, e o pessoal também não
colaborava muito. O americano, então... tinha mó cara de psico, mal encarado e
quieto. Não demorou muito e passou uma garçonete carregando 10 maβ
(mass, caneca de 1 litro) cheios de cerveja. Quase arrancamos duas canecas das
mãos dela (10€ cada) e mergulhamos lá dentro. Quando chegamos à metade das
canecas já estávamos tchucos (lembre-se, leitor, que estávamos em jejum desde a
noite anterior), e aí ocorreu um milagre semelhante ao ocorrido após o
Pentecostes no Cenáculo (Senhor, eu juro que não digo isso por maldade, é só
para ilustrar a cena): nós passamos a entender os suíços, os espanhóis e o
americano, bem como eles nos entendiam perfeitamente. Foi assim que pudemos
descobrir que o espanhol (entendia-o melhor quando ele falava em inglês do que
em espanhol!!!) trabalhava na Telefônica e que, não raro, viajava a trabalho
para São Paulo; que o americano, o Mike, era gente boa demais, trabalhava na
área de processamento de dados de empresas que atuam na reconstrução de países
destruídos por guerras (estava vindo do Afeganistão), e que sua mulher era
bielorrussa e chegaria às 17:00 não sei de onde com os sogros dele, diretamente
para uma das tendas, onde tinha lugares reservados; descobrimos também que os
Suíços eram da Suíça \o/ (é, eles não falavam muito...).
Um lugar ao sol, LITERALMENTE!!!
Prost!
Nós e o Mike: a cerveja pulverizando a barreira idiomática.
Nós, o Mike e o casal espanhol. Saca só minha cara sã.
Quando vimos que o bicho tava pegando
pro nosso lado resolvemos pedir algo pra comer: linguiça branca, chucrute, frango
frito e batata frita. Isso nos deu uma sobrevida e continuamos ali, bebendo,
conversando e rindo. Quatro litros de cerveja depois do início da festa, nos
aproveitamos que o Mike estava de saída para encontrar a família e nos
despedimos dos nossos novos amigos. Fomos andar um pouco para ver se o fígado
metabolizava o álcool mais rapidamente.
Não sei se já falei, mas tem uma penca
de barraquinhas nas ruas do Theresienwiese,
onde vendem toda e qualquer buginganga possível e imaginável alusiva à
festa. Também vendem comida, e há barraquinhas com aqueles joguinhos
característicos de parques de diversão. Por falar em parque de diversão, tem um
gigantesco na área da festa e eu queria por toda maneira ir num brinquedo que é
um elevador que sobe, sobe, sobe e depois despenca lá de cima, mas Josi
embarreirou com medo de eu vomitar nas pessoas. Então fomos tentar algo menos
radical: derrubar latas com bolas de meia. Lógico que não acertamos merda
nenhuma.
O inocente leitor acha mesmo que eu iria acertar alguma coisa!?!
Depois Josi quis comer algo, e
enquanto ela se entendia com a mocinha da barraca eu fiquei olhando o movimento
e pensando em como aquilo tudo era surreal para nós até outro dia. Nisso eu
vejo, mesmo com a visão um tanto prejudicada como e porque o leitor bem pode
imaginar, um “troço” diferente em meio aos entulhos da sarjeta. 15 euros!!!
Achei 15 euros no chão. Com toda a rapidez, desenvoltura e discrição que um
bêbado tem eu me abaixei e peguei o dinheiro. Já dava pra tomar mais uma caneca
e meia de cerveja!
Saindo dali nos dirigimos para a
estátua da Bavária, e no caminho passamos por vários manés bêbados passando mal
e sendo socorridos pelo SAMU local. Ficamos rindo e zoando deles, ainda que
estivéssemos em vias de nos tornarmos os próximos. Aos pés da estátua, assim
como outras centenas de bêbados, arrumamos um lugar na grama e bodamos ali sei
lá por quanto tempo. Quando acordamos já estava escurecendo e resolvemos ir
embora.
Ssssssóbrio!
Foi mal, Ceres.
Chegando ao
hotel demos de cara com a Ceres e pedimos desculpas (simbolizadas pela flor
artificial que eu ganhei na barraquinha do jogo das latas) pelo bolo da noite
anterior. Subimos, tomamos banho e o mundo acabou até a manhã seguinte.
Antes de começar a contar sobre
as atividades desse dia, darei algumas informações sobre o hotel em que
ficamos, pois tem gente que se liga nessas paradas. Então, o hotel foi o Motel
One München City Ost, da rede Motel One, que, até onde eu sei, tem diversos
hotéis espalhados pela Alemanha e pela Áustria. Este no qual ficamos,
localizado na Orleansstrasse 87, na
parte leste de Munique, tem a vantagem de ficar muito próximo à Ostbahnhof, que é uma estação intermodal
de transporte público, com serviços de ônibus, trem e metrô, ou seja, a partir
dessa estação dá pra ir a qualquer lugar de Munique sem muito esforço. Outra
vantagem apresentada por este hotel e já destacada no capítulo anterior é que,
à noite, o hall se transforma em um barzinho. E a outra vantagem a ser
destacada é que há (pelo menos havia na época) uma funcionária brasileira muito
gente boa, a Ceres, simpática, atenciosa e divertida. Algumas coisas que deixam
a desejar no hotel: não há frigobar no quarto e nem servem café-da-manhã, e a
cama de casal king size prometida são
dois colchões de solteiro colocados lado a lado numa estrutura (cama) lisa, de
modo que, quando a gente se deita mais pro meio, perto da junção dos colchões,
estes se espalham, cada um pra um lado, e você cai no vão formado entre eles.
Mas, pra nós que não ficaríamos muito tempo no quarto, estava de bom tamanho. A
reserva foi feita através do Booking.com, com dez meses de antecedência, e
ficou em 110 € a diária + 9 € de estacionamento por dia. À primeira vista pode
parecer caro (e é mesmo), mas lembro ao desmemoriado leitor que isso é Munique
em época de Oktoberfest, ou seja, se
você deixar para fazer as reservas faltando seis meses ou menos, corre o risco
de ficar sem hotel ou pagar um valor ABSURDO, coisa de mais de 1.000 € a
diária, num quarto furreca. E isso é tudo que eu tenho pra dizer sobre o
hotel... Ah, não! Tem mais: as tomadas!!! Eram compatíveis com a gambiarra do
carregador da câmera... Aleluia! Agora vamos à esbórnia...
Acordamos não tão cedo, mas
também não muito tarde, e ficamos na dúvida:
– Putz, o hotel não serve
café-da-manhã. Onde e com o que vamos quebrar o jejum? – E algo em minha mente
dizia, como num sussurro sugestionador:
– Viktualienmarkt... Cerveeeeeeeeeja...
E foi assim que fomos ao Viktualienmarkt, o Mercado das
Vitualhas. Ahn? O obtuso leitor não sabe o que são “vitualhas”? Tá precisando
estudar e ler mais, hein, burrão!? Mas vou quebrar essa pra você pois eu
também não faço a menor idéia do que seja isso, mas claro que não vou admitir
nem debaixo de porrada. Segundo o ONISCIENTE:
vitualhas (vi-tu-a-lhas)
s. f.
pl.
Gêneros alimentícios; víveres.
Deu pra entender aí, leitor? Deu,
né? Sabia, ah ha ha! Que bichona!... Mas então, Viktualienmarkt, o Mercado das Vitualhas, é o Mercado dos
Alimentos, ou seja, uma grande feira livre. Mas ainda iríamos descobrir isso.
Saímos então para a Ostbahnhof e, com as dicas da Ceres, foi
facinho comprar os bilhetes (tem uma modalidade na qual você paga um único
bilhete e serve por um dia inteiro para até 5 pessoas, e sai quase ao mesmo
preço do bilhete simples). Saltamos na Marienplatz,
passamos pela Alter Peter (igreja de
São Pedro) e chegamos finalmente ao tão sonhado e desejado Viktualienmarkt. O Viktualienmarkt
cantado em verso e prosa, um espaço fantástico, repleto da essência de Munique,
com seus sons, cheiros, cores, texturas e sabores que marcam profundamente no
espírito do viajante a lembrança quase palpável da cidade, numa experiência
multi-sensorial arrebatadora... E estávamos ali, leitor! E sabe de uma coisa?
QUE BELA BOSTA! A primeira coisa que me veio à mente foi a Vila Rubim, aqui em
Vitória, só que com mais status. Nada contra a Vila Rubim, que até acho um
lugar interessante, mas, convenhamos, para isso não precisávamos ter saído de
casa. Onde estava a tão propalada profusão de produtos regionais que encanta
locais e turistas? As barraquinhas só vendiam salame e salsicha. Tá, tinha mais
coisas. Muito mais coisas, pra ser sincero. Mas o impacto da primeira má
impressão já se havia abatido sobre nós.
O Viktualienmarkt com a Peterskirche ao fundo (foto chupada da internet)
Contudo, sabíamos que havia algo
que poderia minorar, e até mesmo inverter nosso sentimento de frustração: cerveja!
E tomar uma cervejinha de trigo no café-da-manhã, observando placidamente o
movimento no Viktualienmarkt, apesar
de tudo, tem lá seu charme. E olha só que sorte: eis que avistamos em meio às
barracas sem graça, qual oásis verdejante na imensidão árida do deserto, um
quiosque da Paulaner. Aproveitando a
analogia do oásis no deserto, disparamos para lá como dois dromedários sedentos
(ia usar “camelo”, mas no capítulo anterior já havia comparado minha mijada à
de um camelo, então não quis ser repetitivo). O cara que atendia no oásis,
digo, no quiosque da Paulaner acabara
de chegar e ainda estava arrumando as mesas, de modo que éramos seus primeiros
clientes do dia. E suponho que, para alguém que trabalhe no comércio, ter
clientes seja uma coisa muito boa. Mas não para o beduíno (esse negócio de
deserto é prolífico em possibilidades de analogia!) em questão, pois nem deu fé
na gente e continuou sua arrumação. Ficamos ali sentados ao ar livre, esperando
pacientemente que o zé-buceta se dignasse a nos atender. Uns cinco dias depois
ele percebeu nossa presença e, com a simpatia que só um alemão escroto e
chupador de limão pode ter, veio até nós e perguntou o que queríamos. Pedi o
cardápio, ele me olhou com uma cara-de-bunda-sodomizada, deu meia-volta se embrenhando
no quiosque e voltou de lá trazendo o cardápio. Pedimos a cerveja e ficamos
olhando o cardápio. Ainda bem que o cara estava numa má-vontade da porra e
demorou pra trazer a breja, pois aí deu tempo de constatarmos que só havia
linguiça branca e pretzel para comer.
Pô, até gostamos e tal, mas pro café-da-manhã naquele dia não ia rolar. Aí
tomei coragem e fui até o caboclo perguntar se não havia mais nada de
comestível disponível. Ele negou, e com a negativa eu cancelei a cerveja e saí
correndo, arrastando Josi pelo braço, antes que o simpático puxasse uma 12 de
trás do balcão e nos alvejasse sem piedade.
Rodamos um pouco, olhando as
barraquinhas e escolhendo em qual delas pediríamos nosso pão-com-linguiça, até
que nos decidimos por uma. Entramos, pedimos os lanches apontando o dedo, pois
o nome do troço, em alemão, era inescrutável para nós. Na hora de pagar, o
camarada olhou bem pra gente e perguntou de onde éramos. Quando dissemos que
éramos brasileiros a reação do cara foi, no mínimo, inusitada. Convido aqui o
leitor a um exercício de imaginação. Realize a cena: pensa num camarada de uns
dois metros de altura, branquelão, sério, com postura quase militar, exclamar
quase aos gritos: “OH! BRASIL!!! TCHACA TCHACA TCHACA!!!”, ao mesmo tempo em
que se transforma na mulata globeleza, requebrando feito uma minhoca numa crise
epiléptica, simulando ter nas mãos duas maracas (chocalhos, leitor), as quais
balançava freneticamente. Não sei ao certo por quanto tempo ficamos ali
atônitos, estáticos, aparvalhados com aquela cena grotesca... Provavelmente foi
por uma fração de segundos, mas a nós pareceu muuuuuito tempo, até que
conseguimos nos livrar do encantamento do galego globeleza e balbuciar alguma
coisa. Depois começamos a rir descontroladamente, negando com veemência, mas em
tom de brincadeira, o estereótipo a nós imputado. Nos despedimos e deixamos
para trás o simpático alemão, que ainda ria e gritava coisas para nós, como
“carnaval”, “futebol” e “Rio de Janeiro” (acho que ele não sacou quando
dissemos que éramos capixabas, hahahaha).
Bom, agora que já tínhamos nosso
lanchinho nos encorajamos a tentar a cerveja novamente. E lá fomos nós outra
vez para o quiosque do ogro, e fomos recebidos com a peculiar solicitude de uma
mula brava. Pedi a cerveja e, enquanto o bostão foi buscá-la, desembrulhamos
nossos sanduíches e nos pusemos a comer. Quando o filadaputa voltou já vi de
longe que ia dar merda. Ele botou a cerveja na mesa e latiu qualquer coisa em
seu idioma bestial. Fiz cara de interrogação e ele repetiu os rosnados
apontando para os sanduíches. Ele estava dizendo que não podíamos comer ali, a
não ser que fosse a comida da porra do quiosque dele, mesmo que estivéssemos
dispostos a consumir toda a cerveja do estoque. Parei de comer e embrulhei os
restos dos lanches na sacolinha de papel, sem desviar o olhar de cima do
idiota, que continuava ali, de pé, zelando para que sua ordem fosse cumprida.
Nesse curto intervalo raciocinei sobre quais alternativas eu tinha: beber a
cerveja; mandar o cara tomar no cu; ou levantar e ir embora sem pagar a
cerveja, que já estava aberta. Vontade para optar pela terceira alternativa não
me faltou, mas ia ser confusão na certa, daí resolvi-me por uma mescla das duas
primeiras opções: ergui o copo bem nas fuças do babacão e, como se estivesse
brindando, mandei-o tomar bem no meio daquele rabo que devia estar assado pelo
inequívoco mau uso. Bebemos, pagamos e saímos, para nunca mais. Lógico que não
deixamos gorjeta. Dali fomos às compras, mas isso é assunto para o próximo
capítulo.
Já que nosso intento de beber
cerveja no mercadão de Munique havia sido sabotado, tínhamos que caçar outro
lugar pra fazer isso. Pensa daqui, pensa de lá, nem pensamos tanto e uma coisa
ficou certa: iríamos a um biergarten!
Tá, tá, já sei... o ilustríssimo leitor não faz idéia do que seja um biergarten... Vamos transportar a bagaça
para o inglês e depois para o português: bier
= beer = cerveja; garten = garden = jardim; logo: biergarten
= beer garden = jardim da cerveja.
Sacou, ou quer que eu desenhe? – “Mas o que é um jardim da cerveja?” –
certamente me inquirirá algum acerebrado leitor. É o seguinte, meu prezado
muar: pensa num boteco onde as mesas são colocadas ao ar livre. Pensou? Isso é
um biergarten. Nada demais, né? Bom,
pode não ser nada demais pra gente, que vive o verão nas quatro estações; pra
eles, que vivem metade do ano enclausurados dentro de casa por causa do frio, é
muita coisa. Enfim, grande coisa ou grande merda, isso é um biergarten e era num troço desse que
queríamos ir. “Mas em qual? Há vários, muitíssimos, em Munique.” “Vamos matar
dois coelhos com uma paulada só: bora beber num biergarten do Englischer
Garten!” Calma, apressado leitor, já explico: Englischer Garten, ou Jardim Inglês, é um parque de Munique. Está
para Munique como o Ibirapuera para São Paulo, a Redenção para Porto Alegre, a
Pedra da Cebola para Vitória ou a Beira-Rio para Castelo. Então, era isso que
faríamos.
Pegamos o metrô na Marienplatz e saltamos na estação da
Universidade de Munique. Dali até a entrada do Englischer Garten é um pulo. Pulamos e estávamos lá. O lugar é
muito maneiro, muitas árvores, muita grama, muito verde, córregos e rios, e uma
multidão de branquelos que acham que estão na praia.
A "praia" de Munique
Rio cujas águas beiram -273,15 ºC, provenientes do degelo de alguma montanha.
Espécime de peixe mutante (deve beber muita cerveja para aguentar o frio).
Mas nós estávamos ali para beber
cerveja, então perguntamos pela Chinesischer
Turm, a Torre Chinesa, onde tem um biergarten
da Hofbräuhaus, e rumamos para lá.
Como pode muito bem imaginar o esperto leitor, há no local uma torre em estilo
chinês, onde sempre tem uma fanfarra bávara tocando músicas típicas (isso
quando os integrantes largam seus maβ,
o que é raro), e ao seu redor muitas e muitas compridas mesas e bancos. Quase
ao lado da torre está uma espécie de restaurante fast food a céu aberto da Hofbräuhaus.
No capítulo anterior eu disse que a Hofbräuhaus
é a cervejaria muniquense mais conhecida fora de Munique, pois os muniquenses
não apreciam muito a papagaiada-engabela-bobo que eles fazem pra atrair os
turistas. O que não quer dizer que a cerveja não seja boa, muito pelo
contrário. E, afinal, nós éramos turistas mesmo, então que se fuck!
Chinesischer Turm
É nóis na Torre Chinesa
Josi fazendo micagem
Achamos uma mesa vazia e nos
acomodamos. Deixei Josi guardando lugar e fui em busca do tônico da felicidade.
Havia um quiosque externo ao fast food,
onde uns manés vendiam a cerveja em canecas de 1 litro ou em copos de 500 mL.
Peguei uma caneca só (porra! 1 litro é cerveja pra caralho!), paguei e, junto
com o troco, o camarada me entregou uma moedinha verde, de plástico, com a
efígie da Torre Chinesa em baixo-relevo. “Whatafuck?”
Aí o cara me explicou que aquela moedinha custava 1 €, que me seria devolvido
se, ao invés de deixar a caneca vazia na mesa, a levasse de volta para eles. Na
verdade não entendi porra nenhuma que o chucrute disse, mas como a fila era
grande e a galera impaciente, não quis atravancar a coisa e lá me fui com a
caneca e com a moedinha. Só fui sacar qual que era a da parada depois,
observando o pessoal que recolhia as canecas nas mesas. Lógico, que, ao final
do processo embriagatório, eles ficaram com meu euro e eu com a moedinha de souvenir.
Assim foi que ficamos ali bebendo
e curtindo a atmosfera do lugar. Não demorou muito e a breja produziu seus
efeitos psicotrópicos. Que beleza! Para não ficarmos muito travadões
rapidamente, fui à caça da comida. Não, lesado leitor! Apesar de estarmos
praticamente dentro de uma floresta, eu não saí com meu arco-e-flecha
importunando a fauna local. Como disse acima, há um restaurante da Hofbräuhaus, e eles servem aquilo que
pode ser chamado de fast food alemão.
Funciona assim: você entra numa fila gigantesca da porra (mas ela anda bem
rápido), até chegar ao balcão, onde vários funcionários estão fritando e
assando linguiças e cortes de frango e porco, bem como batatas. Daí você diz o
que quer, ou melhor, no meu caso eu apontei para o que queria, e eles te
servem. Dali você segue na fila para os acompanhamentos, e outros funcionários
te servem porções pré-definidas daquilo que você quiser (eu sempre apontando as
coisas). Depois de pegar tudo o que quiser, você vai para a fila do pagamento,
que é feito em uns quiosques com roletas que dão passagem da área do
restaurante para as mesas. Nesses quiosques as mocinhas olham o que tem em sua
bandeja e fazem a cobrança, além de entregarem talheres e mostarda. Na primeira
vez a gente fica meio perdido no meio do turbilhão de gente, mas depois pega a
manha e acostuma.
BIERGARTEN!!!
Voltei pra mesa com, adivinhe,
leitor adivinhão?, weisswurst
(linguiça branca), joelho-de-porco, batatas e chucrute. Por falar em chucrute
(repolho fermentado), meu pai contava que quando estudou no colégio jesuíta
Cristo Rei, em São Leopoldo - RS, não era raro ter chucrute nas refeições, pois
os padres, alemães ou descendentes em sua maioria, adoravam o tal petisco. Só
que, ao que parece, os bosches não
primavam muito pela higiene no processo de produção da bagaça, de modo que,
quando havia chucrute, os estudantes ficavam sabendo antes pelo mau cheiro e
entravam no refeitório tapando o nariz com as mãos, cobrindo o prato com a
bandeja, pois o troço era azedo e fedido. Isso deixava os superiores alemães
putos da vida e, via de regra, havia represálias. Só alguns anos depois, já na
Bélgica, foi que ele provou (e gostou!) o chucrute de verdade, bem feito.
Cresci ouvindo essa historinha do meu véio e, por isso, sempre tive curiosidade
sobre o tal do chucrute. E sabe que é até bonzinho o negócio!? Nada muito
diferente de uma tradicional salada de repolho, mas, assim como a salada, é
bom.
Primeiro a indefectível cerveja de trigo, com weisswürst e chucrute...
... depois uma oktoberfestbier e um joelhinho de porco pra rebater
E ficamos ali, comendo e bebendo,
e ouvindo a bandinha dos chucrutes. Os caras tocavam uma música, daí davam uma
pausa, pegavam as canecas sob as cadeiras, bebiam, acendiam um cigarro,
fumavam, secavam a caneca e aí tocavam outra musiquinha, sempre no mesmo
estilo. E repetiam esse ritual como um mantra. Depois de muito tempo, já com a
visão meio prejudicada, resolvemos que era hora de vazar. Aí vazamos. Fomos
andando pelas trilhas entre as árvores até chegarmos a um grande espaço aberto
todo gramado. Havia uma leva de gente ali, praticando (ou não) as mais variadas
atividades: tinha a galera que jogava bola; os dementes de cueca que tomavam
cerveja dentro do rio, cujas águas de temperatura próxima ao 0 kelvin provinham
do degelo de alguma montanha; tinha a galera que pedalava; e tinha um bando de
zé-manés que não fazia nada, igual um monte de calango ao sol. Uma pena,
leitor, é que não consegui achar a área de nudismo (na verdade Josi me fuzilou
com os olhos quando mencionei a possibilidade)... Mas então, não sei se pelo
cansaço da peregrinação, o bucho cheio das leves e saudáveis comidas alemãs ou
os três litros de cerveja que cada um de nós bebeu, mas o fato é que foi batendo
uma leseira do caralho e então meu olhar, com a agudez que o álcool permitiu,
divisou um ponto estratégico no gramado, uma sombrazinha bem na fímbria do
bosque, próxima ao rio. Nos arrastamos até lá, capotamos sobre a grama e
dormimos o sono dos justos... Até babamos...
Sombra convidativa...
Que leseira! ZZZ zzz ZZZ zzz ZZZ zzz
Acordamos com a risada de uma
criança cuja mãe se sentou ali por perto para ler estorinhas para a filha. Sei
lá quanto tempo ficamos ali desmaiados, mas, fosse como fosse, era hora de
irmos embora. Nos encaminhamos para a estação da Universidade, de lá para a Ostbahnhof e dali para o hotel. Devia
ser umas 19:30. Tomamos banho e deitamos para descansar até as 23:00, hora em
que marcamos de sair pela noite de Munique com a Ceres. Quando acordamos já era
mais de meia-noite e certamente a saída tinha miado. Estávamos com uma fome
absurda, então desci até o bar/recepção, descolei quatro mistos-quentes e duas
garrafinhas de coca-cola. Subi e me dei conta de que não havia abridor de
garrafa no quarto. Abri as garrafas forçando a tampa contra a quina da pia do
banheiro, o que provocou a quebra do gargalo de uma delas. “Ah! que se foda!” O
sono e a sede eram tantos que não nos importamos com os possíveis estilhaços no
líquido. Terminado o lanche, capotamos na cama novamente. O dia seguinte prometia...
Ia começar a OKTOBERFEST!!!
Acordamos lá pelas 07:00 da
manhã, arrumamos as tralhas, deixamos tudo pronto e descemos (ou subimos, sei
lá) para tomar café. Café tomado, check-out
feito, caímos no mundo novamente. Íamos para Munique, passar os próximos quatro
dias lá. E olha só que coincidência!, aparvalhado leitor: a Oktoberfest começaria dali a dois
dias!!! Claro que não era coincidência merda nenhuma, havíamos programado toda
a viagem em função dessa festa. Mas não estávamos indo só pela festa. Por isso,
dos quatro dias reservados para Munique, dois seriam antes da Oktober.
Salzburgo fica a uns quarenta
quilômetros da Alemanha, de modo que antes que houvesse tempo para piscarmos
estávamos passando pela fronteira. E ainda bem que não deu tempo de piscar,
porque se a gente pisca nem veria que entrou na Alemanha. Era o mesmo esquema
de fronteira da Itália com a Áustria: uma plaquinha mixuruca nas cores da União
Européia, onde estava escrito Deutschland,
e que, novamente, nem deu tempo de fotografar. Na verdade a sensação foi mais insignificante que na fronteira
ítalo-austríaca, pois lá, pelo menos, o idioma das placas denunciava a mudança
de país.
Mas que se foda! Agora estávamos na
Baviera, ou Bavária, a terra da cerveja, pela qual tanto ansiamos neste um ano
através do qual planejamos a viagem! E de quebra eu dirigia numa AUTOBAHN!!! Uma autobahn, automobilístico leitor! Quatro pistas de cada lado e
velocidade liberada! O sonho de consumo de todo motorista pé-de-chumbo. E eu
pisei com fé, até quase fundir o motor do Gasparzinho. Na verdade verdadeira
mesmo, às vezes eram só duas pistas, quando muito três, e logo no início eu
fiquei com receio, pois não vi nenhuma placa que dissesse que a velocidade
estava liberada. Melhor dizendo, eu não vi nenhuma placa em que eu pudesse
entender que a velocidade estava liberada. Então eu fui na onda dos meus amigos
chucrutes: quando via uma Mercedez ou BMW passar zunindo por mim, eu acelerava
e tentava acompanhar; quando elas diminuíam, eu diminuía junto. Mas esse troço
de velocidade liberada é meio ilusório. Até que há trechos onde se pode sentar
o pé com gosto, mas na maior parte da estrada a velocidade é controlada, seja
por conta de obras na pista (muitas obras!!!), seja pela existência de
vilarejos e cidades às margens da rodovia, ou seja sei lá porquê.
Lei de Murph: nós na Autobahn CONGESTIONADA!
Ao longo da viagem Josi notou um
detalhe interessante na disposição das casas e construções rurais alemãs: não
há vilas. Esparçados na paisagem a gente vê aglomerados de três ou quatro casas
juntas (deve ser um tipo de clã), e alguns galpões ao redor. Segundo dedução
mui acertada de Josi, esses galpões devem servir para preparar o básico da
culinária bávara: num galpão fazem a cerveja e no outro o chucrute; se a
família for abastada há o galpão do broti, o da linguiça e o do joelho-de-porco.
Outra coisa que nos chamou a
atenção no trajeto foi a “cidade” de Ausgang.
Logo que entramos na Alemanha começamos a ver placas indicando Ausgang. À medida em que avançávamos
íamos vendo mais e mais placas com setas para Ausgang. Estávamos quase chegando em Munique e só havia placas para
Ausgang. “Porra! Essa tal de Ausgang deve ser gigantesca, a maior e
mais importante cidade da Alemanha! Deve ser uma espécie de Roma da
modernidade, pois todos os caminhos levam até ela!” E eis que avistamos mais
uma placa para Ausgang, ao mesmo
tempo em que o GPS dizia para pegarmos a saída da autobahn. Olhamos um pra cara do outro, quase que com vergonha um
do outro: “Não! Não pode ser...” Mas era. Compreendeu a situação, leitor? Não!?
Cê é sonso, hein! Mais que nós. Seguinte, lerdo leitor: a grande cidade de Ausgang, jóia e esplendor da Baviera,
simplesmente não existe! Ausgang significa
saída, em alemão. As várias placas
para Ausgang ao longo de toda a autobahn que percorremos indicavam isso:
saída.
Pegamos uma daquelas ausgang, pois antes de Munique iríamos a
Dachau, cidadezinha situada a noroeste daquela, visitar um extinto campo de
concentração nazista. Chegar ao centro de Dachau foi fácil, o difícil foi
encontrar alguém para pedir informação sobre o endereço do campo de
concentração. Sim, leitor, este que a ti narra cometeu a jumência de não anotar
o endereço do lugar, de modo que o GPS pouco adiantava. Dachau, como dito
acima, é uma cidadezinha vizinha a Munique, pequenininha, e bem ajeitada como
toda pequena cidade alemã que vimos no caminho, muito bonitinha mesmo. Mas de
tão pequena, acho que não tinha nem gente, pois não se via uma viva alma nas
ruas. O jeito era parar o carro e entrar em algum estabelecimento para
perguntar. Foi nessa hora que percebemos que Dachau não era uma cidade-fantasma:
todas as vagas de estacionamento de suas pequenas ruas estavam ocupadas.
Putaqueopariu!!! Ficamos dando voltas e mais voltas na miséria da cidade até
acharmos uma vaga, e num lugar meio que proibido. Deixei Josi no carro, caso
algum guarda enjoado aparecesse pra encher o saco, e entrei numa espécie de
padaria. Lá só havia uma pessoa: uma véia muito véia, mas simpática. Tentei me
comunicar com a criatura, pedindo que ela escrevesse no papel que eu lhe
apresentava o endereço do campo de concentração, mas o inglês dela era pior que
o meu. Mesmo assim ela entendeu o que eu estava querendo e me indicou o posto
de informações turísticas da cidade, que ficava ao lado da igreja, segundo ela.
“E agora?” Olhei pro alto e vi uma torre. “Deve ser a igreja.” Era. Roda daqui,
roda de lá, achei o tal posto de informação, e a prestimosa senhorita que lá
atendia me passou o bendito endereço. Bora pra lá.
Chegamos, deixamos o Gaspa na rua
mesmo, nos encaminhamos para a portaria, onde eu comprei um áudio-guia em
espanhol (3,50 €). A entrada é gratuita. Mas antes de falarmos da visita em
si, um pouquinho de história: em 1933, logo após a ascensão de Hitler ao posto
de chanceler do Terceiro Reich, foi
criado em Dachau o primeiro campo de concentração para prisioneiros políticos
do regime nazista. Desta forma Dachau carrega a sinistra honraria de ter
servido de projeto-piloto e modelo para os campos de concentração subsequentes.
Com o passar do tempo e a eclosão da Segunda Guerra, pessoas de outros grupos
perseguidos pelos nazistas foram ali alocadas, tais como judeus, testemunhas de
Jeová, comunistas, negros, homossexuais e prisioneiros políticos dos países vizinhos
invadidos pela Alemanha, que eram forçados a trabalhar na indústria bélica
fomentando a demanda do exército alemão. Estima-se que mais de 200.000 pessoas
tenham passado pelo campo de concentração de Dachau, das quais 41.500 morreram
sob as mais diferentes formas: doenças, maus-tratos, desnutrição, suicídio, servindo
de cobaias em experiências “médicas”, assassinados a tiro e em câmaras de gás.
Em 1945, já próximo ao final da guerra, tropas americanas libertaram os
sobreviventes. O campo foi então parcialmente destruído, mas em 1965 um comitê
formado por sobreviventes resolveu criar o Memorial
do Campo de Concentração de Dachau, aproveitando a estrutura que ainda
estava de pé, e reconstruindo aquilo que foi destruído. Estas e outras
informações o estudioso leitor poderá encontrar clicando aqui (clica, emônha!).
Mas passemos à nossa visita...
Chegamos, pegamos o áudio-guia e fomos para a entrada do campo. Logo de cara
percebi que o áudio-guia era totalmente dispensável. Não o utilizamos, e ele
demonstrou ser apenas um trambolho estorvento que tivemos que carregar durante
a visita.
Maquete do Campo de Concentração de Dachau
O cartão de visitas do Memorial é
justamente seu portão de entrada. Cara, na boa, esses nazis eram realmente
muito filhosdaputa!!! Arbeit macht frei é
a sádica frase entrelaçada no portão. “O trabalho liberta.” Caráleo! Vão tomar
bem no fundo do olho do cu de vocês, suas desgraças! Tomara que estejam ardendo
no mais quente dos fogos do inferno! Claro que todo o resto foi e é
injustificável, mas essa frase jocosa colocada no portão de entrada é o
suprassumo da escrotice, e de uma “desnecessariedade” absurda. É um humor negro
cujo único intento é tripudiar de quem já está no fundo do poço, tipo chutar
cachorro morto, sacou? Acho que nada me provocou tanta repulsa no Memorial
quanto este portão. Escrevi na postagem passada, de brincadeira, que a porta da
caverna de gelo, em Werfen, me lembrou a porta do inferno, segundo a descrição
de Dante. Mas ali, naquele dia, em Dachau, eu vi a verdadeira porta do inferno:
o Arbeit macht frei de Dachau é a
tradução perfeita do infernal Lasciate
ogni speranza, voi ch’entrate. Mas, sigamos...
Passamos pelo portão e entramos
no inferno, digo, no campo de concentração propriamente dito. Um imenso espaço
plano com algumas construções dispostas esparçadamente. O lugar tem uma aura
muito estranha. Entrar ali é meio que como levar um soco no peito. A atmosfera
é pesada, opressiva. São muitos os visitantes, mas o silêncio prevalece, e o
som das poucas palavras ditas em sussurro se perde na vastidão. O leitor mais
atento vai perceber que nas fotos desse lugar terrível não há sorrisos. Não há
a menor vontade de se sorrir.
A porta do inferno e o "humor" nazista
O silêncio se faz imperativo naturalmente
O primeiro lugar que visitamos
foi o bunker onde funcionava a sede
administrativa do campo. Escritórios, almoxarifado, cozinha, sala de exames
médicos, sala de interrogatórios, tudo contendo textos explicativos (em alemão
e inglês) e grandes fotos dos expoentes nazistas que trabalhavam ali. Além
disso, longos e lúgubres corredores de pequenas celas individuais, onde ficavam
os chamados presos “especiais”. Estes presos eram aqueles que, por algum
motivo, despertavam um interesse mais profundo nos alemães. Geralmente eram
importantes presos políticos, e ficavam separados dos demais e mais à mão dos
nazis. Para quê o astuto leitor pode muito bem imaginar.
Vista externa do bunker
O tétrico corredor das celas dos "presos especiais"
Cela
Foto de uma inscrição feita na parede de uma cela: Misericórdia, Jesus!
Dali passamos a outro galpão, com
muitos salões e muito mais espaçoso que o bunker.
Não me lembro, ou não sei o que funcionava ali no período de atividade do
campo. Hoje em dia é onde fica um museu, com muitos banners que contam a triste história do campo de concentração. É
chocante olhar aquilo tudo. Há também a exposição de muitos objetos (originais
e réplicas) utilizados pelos presos, como pratos, talheres, roupas, baralhos,
dados, além de alguns instrumentos de tortura.
Propaganda nazista exibindo os tipos de "degenerados" reclusos no Campo
A morte em alguns de seus múltiplos aspectos
Objetos pessoais de um dos prisioneiros
O distintivo que todo judeu devia usar
Antiga placa da entrada da câmara de gás, e braçadeira que os presos que trrabalhavam nela usavam, acho que para não serem mortos por engano
O traje dos prisioneiros (e o meu reflexo no vidro, merda!)
Instrumento de tortura: umbigo de boi
O resultado das "umbigadas"
Com uma sensação opressiva muito
grande saímos dali novamente para o espaço aberto do grande pátio, em busca de
um ar mais leve. Mas o alívio durou pouco, pois logo nos encaminhamos para a
área onde ficavam os alojamentos dos prisioneiros comuns. Depois da guerra os
alojamentos foram postos abaixo, mas em virtude do Memorial foram construídas
réplicas de dois dos cinquenta e dois galpões que havia, com as “camas”, mesas,
cadeiras, armários e banheiros que os presos utilizavam. Nesse lugar a gente
tem a real dimensão da quantidade de gente que sofreu ali. Dos alojamentos
originais só restam as fundações, que ladeiam uma longa alameda pela qual a
gente vai andando devagar, pensando na miséria da existência humana e em como e
porquê o ser humano pode ser tão escroto com os seus semelhantes, movido pelo
egoísmo e pela intolerância.
O exterior do museu
Réplica dos armários dos alojamentos dos presos comuns
As "camas" dos prisioneiros
Apesar de tudo, esse devia ser o melhor lugar do Campo para aqueles que conseguiam dormir
A alameda com os galpões dos prisioneiros
A alameda nos dias de hoje
O que restou dos alojamentos: as fundações
Mas, como diria Murphy, tudo que
é ruim pode piorar. Essa alameda nos conduz em direção ao lugar mais sinistro
em que eu já coloquei os pés até hoje em toda a minha vida: a zona do
Crematório. Essa zona seria como um anexo ao campo, e chegamos a ela
atravessando um fosso e um portão com uma torre de sentinela. A placa da
entrada, que a mim pareceu um marco funerário, dá o tom do que está por vir.
O portão de acesso à área do Crematótio
À primeira vista o lugar aparenta
ser muito agradável: um bosque muito bonito, com várias trilhas entre a
vegetação. Mas, seguindo essas trilhas, não demora muito e a gente dá de cara
com o local das valas comuns onde cinzas e corpos eram jogados. Mais à frente a
área de execuções a tiro, e um fosso para onde o sangue escorria.
Valas comuns: cinzas...
... e corpos
Área de execuções a tiro
O fosso para onde escorria o sangue dos executados
Todo esse itinerário vai
“preparando” o visitante para o gran
finale (sem nenhum sentido pejorativo ou cômico): as câmaras de gás e os
fornos crematórios. Os prisioneiros eram levados para esta área com o pretexto
de que seriam desinfectados de piolhos, pulgas e carrapatos através da
fumigação de um produto. Na ante-sala eles tiravam as roupas e passavam então
às câmaras de gás, de onde os corpos eram retirados e empilhados nas chamadas salas
da morte, ou necrotério. Dali eram levados para os crematórios.
A antessala da morte
A porta da câmara de gás
O gás saía por esses buracos redondos no teto
Corpos empilhados à espera da cremação
O crematório
Os fornos...
... em escala industrial
Depois de percorrermos todos
esses lugares de sofrimento nos sentíamos extenuados física e mentalmente. Nos
encaminhamos para o portão. Arbeit macht
frei... Esses nazistas...
A visita ao Memorial de Dachau é
uma experiência que não dá pra ser traduzida em palavras. A gente até tenta,
mas fica longe daquilo que realmente passa por nossas cabeças e espíritos. É
transformadora, e nos faz pensar muito, mas muito mesmo, sobre as relações
humanas. Os nazistas perpetraram abominações sem tamanho contra pessoas
indefesas, e até hoje são execrados por isso, mas o pior de tudo é perceber que
o grupo de pessoas que sofreu as violências do nazismo e muitas outras
violências no decorrer de toda a história, e que se ofende violentamente ao
menor sinal de contestação desse sofrimento, uma vez colocado num lugar de
destaque e poder, haja de forma semelhante contra grupos mais fracos, negando a
estes aquilo que sempre defendeu para si mesmo. Parece que a violência sofrida
embruteceu seus espíritos. Mas o prezado leitor não vem aqui pra saber o que eu
penso desses assuntos. E também, que se foda se não concordar: estamos indo pra
Munique tomar cerveja!!!
Que bom se fosse assim!
Antes de chegarmos lá... Oi? Como
é? Lá onde? Lá em Munique, leitor energúmeno!!! Eu disse isso no final do último
parágrafo e você já se esqueceu?! Não é porque estamos na Alemanha que você tem
que afetar Alzheimer. Mas vamos lá...
Antes de chegarmos LÁ EM MUNIQUE, acho pertinente falar um pouco sobre a
cidade. Ahn? O entediado leitor não acha essa explicação prévia pertinente? Ah!
Vá se fuder! Cala essa boca sua de chupa-rôla e me deixa continuar a história,
caralho!
Então, Munique começou com um
mosteiro no século XIII, daí o nome München,
que significa monge em alemão, ao redor do qual a população foi se instalando.
Este mosteiro ficava onde hoje é a Peterskirche
(igreja de São Pedro), bem no centro da cidade atual. No século XII foi alçada
ao status de cidade, passando depois à capital da Baviera, que era um reino
autônomo no sul da atual Alemanha. No início do século XX Munique foi berço do Nationalsozialistische
Deutsche Arbeiterpartei, o Partido
Nazista, pois Hitler morou na cidade durante sua juventude, chegando a
organizar um golpe de Estado fracassado, conhecido como o Putsch da Cervejaria, pois foi anunciado dentro da Burgebräukeller. O
golpe deu com os burros n’água, Hitler foi preso e, na cadeia, teve bastante
tempo para sistematizar suas idéias tortas sobre o nazismo, compilando-as no
livro Mein Kampf. O resto da história
até o leitor mais songa-monga sabe.Hoje Munique tem
em torno de 1,5 milhão de habitantes, é uma das principais cidades da
Alemanha, conseguindo aliar modernidade com antigas tradições, entre elas a
sagrada arte de produção de cervejas, destacadamente as de trigo. Benditos
sejam aqueles monges!!!
No trajeto entre Dachau e Munique
passamos em frente ao famoso Allianz
Arena, estádio onde se realizam os jogos do Bayern Munich e do 1860
München. E foi só o que
vimos sobre futebol em Munique. Tá, vimos uns cachecóis do Bayern, caros pra caralho, numas banquinhas de jornal nas praças
muniquenses. Mas nem estava tão frio assim, e preferimos desperdiçar dinheiro
com cerveja.
O Allianz Arena, de passagem
Entramos em Munique com o cu na mão, implorando ao GPS que
não nos fudesse. E ele não nos sacaneou: chegamos direitinhos ao hotel. Carro
na garagem, check-in feito, bora
beber! O hotel ficava bem próximo a uma estação de metrô, a Ostbahnhof, ou Estação Leste, e aí
começou a encrenca. Nós, dois panguás do brejo, não fazíamos a menor idéia de
como era o funcionamento de um metrô, quanto mais de um metrô alemão. Perdôe-me
o leitor purista pela cacofonia, mas eu até tinha olhado na internet os
esquemas do metrô de Munique, e o meu amigo Francisco também me explicou mais
ou menos como a coisa era. Só que uma coisa é a teoria, que, teoricamente, eu
sabia, outra é o raio da prática. Ficamos por um tempo com cara de
cachorro-que-caiu-da-mudança, daí o jeito foi perguntar. Nós queríamos ir para
a Marienplatz, que é a praça
principal da cidade, onde está localizada a prefeitura. Interpelamos umas
quinze pessoas, que nos davam informações desencontradas, até que achamos o
guichê. Havia uma fila desanimadora. Deixei Josi na fila, de garante, e fui
caçar as maquininhas automáticas. Achei. Olhei, fucei, apertei, li, apertei,
espiei as pessoas das máquinas vizinhas, apertei mais um tanto de botão...
Desisti. Apelei para uma mulher que terminava de retirar os bilhetes,
mostrando-lhe uma cédula de euro e apontando para a máquina. A égua fez uma
cara de apavoramento, como se eu fosse o próprio cão-chupando-manga, e saiu
blasfemando em alemão. Deve ter achado que eu estava pedindo dinheiro, ou então
que eu estava querendo pagar para comê-la, a estúpida! Pensei: “Agora fudeu a
porra toda! É capaz da vadia chamar a polícia.” Mas a polícia não apareceu, e
sim um camarada solícito que havia presenciado a cena. Será que ele era
realmente solícito ou se interessou por aquilo que a vaca não quis? Não sei, só
sei que disse a ele que queria ir para a Marienplatz,
e ele foi explicando como a parada funcionava. Com um bilhete na mão, agradeci,
ele vazou e eu chamei Josi para me ajudar a comprar o bilhete dela. É mó fácil
depois que se aprende! Agora só faltava achar o lugar onde o metrô para a Marienplatz passava. Demorou, mas achamos.
O metrô chegou, e algumas estações e uns cinco minutos depois subimos as
escadas e demos de cara com isso:
A Marienplatz
Estávamos no meio da praça, de
frente para a Neues Rathaus, ou Nova
Prefeitura, que nem é tão nova assim (construída no século XIX). O prédio é bem
imponente, no seu estilo neogótico (não, preguiçoso e fresco leitor, eu não
entendo porra nenhuma de arquitetura, mas basta uma rápida consulta a deus para que algumas dúvidas sejam
sanadas), e a atração principal é a torre do Glockenspiel, sobre o qual
falarei daqui a pouco. No centro da praça, sobre um pináculo, há
uma estátua dourada da Virgem. Este conjunto – pináculo + estátua – tem o nome
de Mariensäule (Coluna de Maria), e por
isso a praça é a Marienplatz, Praça de
Maria.
A Neues Rathaus, com o a torre do Glockenspiel
Coluna de Maria
Pois é, lá estávamos nós, junto
com uma multidão que apontava suas câmeras digitais para a torre da Neues Rathaus, de uma forma que não era
normal. Daí saquei que estava na hora da dancinha. É, leitor, estava na hora da
dancinha. É o seguinte: na Marienplatz
fica a Neues Rathaus; na Neues Rathaus tem uma torre; na torre
tem um Glockenspiel, que é um
conjunto formado por um relógio + sinos + carrilhão com bonecos. Todos os dias,
em horas pré-determinadas (quatro vezes por dia no verão, e duas vezes no
restante do ano), os sinos tocam umas musiquinhas tradicionais da Baviera, e os
bonecos do carrilhão começam a se mexer numa dancinha que remonta a antigas
lendas e batalhas bávaras. Quando chegamos na praça, devia faltar uns dez
minutos para as 17:00, que, no verão, é uma das horas determinadas, por isso o
clima de excitação e expectativa reinante. Bom, fizemos como todo mundo:
ficamos olhando para o alto, esperando, e apontando nossa câmera para o alto da
torre. De repente começa o espetáculo, e um burburinho de “oh” percorre toda a
praça. Reis, cavaleiros, princesas, monges e todo o resto da corte de
bonequinhos começam a se mover ao som dos sinos. A bagaça dura em torno de dez
minutos, mas, passados os três primeiros, já estávamos de saco cheio.
– Já deu, né?
– Ô!
E assim deixamos a multidão de
abestalhados olhando pro alto e fomos em direção a uma bela igreja que fica
perto da praça. Em sua porta lateral a inscrição dizia Peterskirche, a igreja de São Pedro, também chamada de Alter Peter, a primeira igreja de Munique,
erguida sobre o antigo mosteiro dos monges fundadores da cidade. A porta
lateral, gigante, estava fechada, então ficamos na dúvida se podíamos ou não
entrar. Arriscamos a maçaneta e, Oh! surpresa!, estava aberta. Entramos, ainda
com medo de levarmos um esporro em alemão, mas nada aconteceu. A igreja estava
em horário de visita turística. O interior da Peterskirche é muito bonito, com suas paredes e teto brancos e
adornos dourados. O corredor da nave central é todo ladeado por estátuas
douradas, e conduz rumo ao altar principal, todo em mármore rosa e estatuaria
dourada. Muito foda!
Interior da Peterskirche, a igreja mais antiga de Munique
O belo altar
A Anunciação, na Peterskirche
Dali fomos para outra igreja, a
catedral de Frauenkirche (igreja de
Nossa Senhora), que fica nos arredores da Marienplatz.
É a principal igreja de Munique, sede do arcebispado, cartão-postal e símbolo
da Baviera. Foi construída entre a metade final do século XV e a inicial do
século XVI, em estilo gótico tardio, sobre uma antiga igreja do século XII. A
igreja se destaca na paisagem urbana muniquense devido às suas altas torres de
mais de cem metros de altura, encimadas por abóbadas verdes. Durante a
construção da igreja o dinheiro acabou antes da obra, e o Papa da época
decretou que aqueles que fizessem doações receberiam indulgências dos pecados.
Essa é a história oficial, no entanto há uma variante, muito mais interessante,
que diz o seguinte: quando o arquiteto percebeu que não teria dinheiro
suficiente para terminar a igreja, o próprio Satanás, o Baalzebu, o Senhor das
Moscas, o Leviatã, o Anhangá, o Bodão, o Tinhoso, o Canhoto, o Saci, o Dêmo, o
Cão-chupando-manga-azeda-à-meia-noite-de-sexta-feira-treze-de-agosto-de-ano-bissexto-na-encruzilhada-do-cemitério
(se alguém souber de mais algum apelido maneiro, fala aê que eu acrescento à
lista) se apresentou e disse que arrumaria o restante do dinheiro, desde que a
igreja não possuísse janelas, o que seria uma aberração. O arquiteto topou, e
assim a igreja foi finalizada. Aí o Capeta apareceu pra fiscalizar a obra (tipo
um fiscal do CREA da época), e o arquiteto o levou para um ponto central na
entrada da igreja, de onde o Cramulhão constatou o cumprimento do pacto e se
foi todo feliz e faceiro, abanando o rabo e peidando amarelas nuvens de enxofre,
não percebendo que havia sido enganado pelo arquiteto, que o colocara estrategicamente
em um ponto onde todas as váááááááárias janelas eram encobertas pelas grandes
colunas da igreja. Do lado de fora, percebendo o embuste, ele voltou pra igreja
soltando fogo pelas ventas e demais orifícios, mas não pôde passar do ponto de
onde havia sido enganado, pois o padre acabara de consagrar a igreja a Deus. Embucetado
ao extremo, virado na desgraça mesmo, sem poder fazer porra nenhuma além de
pirracinha, o Demônio se limitou a bater seu pé direito no piso do local onde
foi enganado, e então se escafedeu. Conta-se que existe na igreja a marca do pé da Bestafera, e dizem que o forte e incessante vento que
sopra em volta da Frauenkirche é o Coisa-Ruim
vagando em sua ira impotente contemplando as janelas da igreja.
As torres da Frauenkirche. Como dá pra perceber, uma estava em obras de restauro.
É, é beeeeem alto!
A famosa cúpula verde, símbolo da Baviera
Entramos na igreja e a primeira
coisa que vimos em seu interior foi a improvável Teufelsschritt, a Pegada do Diabo. Sim, incrédulo leitor,
a pata do Capeta deve ser bem pesada em sua ira e deixou uma marca no piso, e isso foi uma das poucas coisas que sobreviveram à destruição quase total da
igreja durante os bombardeios da Segunda Guerra. Está lá, intacta, perfeita,
uma pegada escura, logo na entrada da igreja. E, pela pegada, se confirma a
estória de que o Capeta usa sapato pra disfarçar o pé-de-bode, assim como deve
usar chapéu para esconder os cornos. No lado esquerdo da entrada pudemos ver
uma maquete em madeira da estrutura arquitetônica da igreja, bem como a
estorinha da pegada do Dêmo, traduzida em vários idiomas.
A Pegada do Diabo. Acredite se quiser, hahahahaha!
Ó que calçou direitinho!...
Este foi o ângulo de visão que o Saré teve. Aparentemente não há janelas. Que burro!
Uma das váááááárias janelas que existem por detrás das colunas
Maquete da igreja
Maquete "planta baixa" da igreja, e narrativa sobre a Pegada do Diabo
O
interior da Frauenkirche, em si, é bem simples, quase que desprovido de
ornamentação. Vale destacar a altura das colunas, que impressiona mesmo, e uma
parada lá que parecia com uma tumba de algum figurão, que até então eu não
sabia quem era. Curioso, me dirigi a um funcionário da igreja e perguntei, em
inglês, qual rei estava enterrado ali. O cara me olhou torto e resmungou, com
raiva: “Don’t is king, is Kaiser!” Tá, tudo bem, seu bosch de
merda, se você prefere Kaiser, encha seu rabo sujo de chucrute de Kaiser.
Mas saiba que eu acho uma heresia beber Kaiser com tanta cerveja boa em
Munique. Mas gosto é igual cu, cada um come o dele (do bosch).
Baboseiras à parte, só depois fui descobrir que aquele monumento era a tumba de
Luís IV, imperador (Kaiser) do Sacro Império Romano-Germânico.
Tumba do kaiser (não é king!) Ludwig (Luís) IV
Visão lateral da tumba
Saímos
da Frauenkirche e voltamos para a Marienplatz. Estava tirando
umas fotas da praça quando a bateria da máquina foi pro saco. PUTAQUEOPARIU,
QUE BOSTA DO CARALHO!!! E antes que o ignóbil leitor venha dizer que a culpa é
minha, por não ter botado a porra da bateria para carregar na noite anterior,
eu explico a situação. E que isto sirva de alerta aos leitores que pretendam um
dia se aventurar pelas plagas européias, ou de qualquer outro lugar. Seguinte:
peguei a câmera fotográfica, uma Nikon D3100, emprestada com o meu amigo Paulo.
Ele comprou a câmera quando estava morando em Monterotondo, Itália, através do site
da Amazon da Inglaterra. O carregador da bateria da câmera, portanto, tinha
padrão inglês, que não é compatível com o italiano. Quando cheguei na casa de
Kéia e Junior em Arcade, percebi isso, e o pior era que nenhum dos T’s
(benjamins) italianos casava com a miséria do carregador. Aí Junior juntou uns
fios com um T e fez uma gambiarra mui engenhosa, que deu pro gasto. Isso na
Itália, pois o padrão dos T’s italianos é diferente das tomadas austríacas,
que, por sua vez, são diferentes das alemãs. Mais pra frente descobri que
dentro da própria Itália eles não se entendem quanto a isso. Ou seja, leitor,
carregue com você uma mochila com todos os adaptadores do mundo. Eu, como não
havia feito isso e só contava com a gambiarra de Junior, não tive o que fazer
quando cheguei ao hotel em Salzburgo. Portanto, a carga de bateria durou um dia
e meio de intensa utilização, mas, por fim, acabou. De modo que daqui pra
frente não há mais registro fotográfico das atividades desse dia, o que, como
bem pode imaginar o sagaz leitor, nos deixou muito felizes...
Mariensäule, a última foto
“E
agora?” Bom, já havíamos ido ao inferno, e depois pisado na pisada do Capeta.
Estava na hora de expurgar, exorcizar toda essa energia ruim com algumas horas
dedicadas à santa apreciação de bebidas religiosas, fabricadas, em sua origem,
por piedosos monges bávaros, responsáveis inclusive pela criação da cidade. O
garçom seria nosso padre, e ele aspergiria em nossos copos a água benta de
cevada e/ou trigo. “ESTAMOS EM MUNIQUE, PORRA!!! BORA BEBER!!!”
E foi
assim que procuramos e encontramos a Augustiner, nos arredores da Marienplatz.
Cervejaria tradicional, a Augustiner Bräu é o refúgio dos muniquenses
que querem fugir da “macumba-pra-turista” da Hofbräuhaus, a cervejaria
mais conhecida de Munique fora de Munique. E, como diz o ditado, “em Munique,
faça como os muniquenses”. Assim que entramos o garçom veio até nós,
indicou-nos uma mesa e trouxe-nos o cardápio. Foi aí que pude colocar em
prática todo meu conhecimento do idioma alemão:
–Ein bier, bitte! – traduzindo pro leitorburrão: Uma
cerveja, por favor!
– And for eat? – E pra comer?, perguntou, em inglês, o garçom.
Aí a porca torceu o rabo e a
jiripoca piou! Nós queríamos chucrute, linguiça branca e joelho-de-porco.
Linguiça branca, weisswurst em
alemão, eu sabia falar. Chucrute, tem um nome lá deles , mas quandoeu disse “chucrute” o cara entendeu: “Jaaaa!”
Mas e o raio do joelho-de-porco? Havia até olhado isso aqui no Brasil, mas quem
disse que lá eu lembrei como era? Nem em inglês eu consegui falar, deu um
branco na hora. Daí a solução foi apelar: retoquei o óleo de peroba em minha
cara, evitei olhar para Josi para não rir e estragar tudo, e imitei um porco
(óinc, óinc!) ao mesmo tempo em que apontava para meu joelho. Tá, perplexo
leitor, foi ridículo, eu sei. Mas o cara entendeu. Não achou tanta graça como
nós, mas entendeu e se foi.
E eis que, de repente, o garçom retornou
trazendo consigo dois Maβ (pronuncia-se Mass, pois o “β” pode
substituir os “ss” no idioma alemão), aquelas famosas canecas de 1 litro,
contendo em si o elixir capaz de abolir todos os males do mundo. Fosse eu Dom
Quixote, diria que o garçom era Sancho Pança trazendo o Bálsamo de Ferrabraz!
Sancho, digo, o garçom depôs as canecas na mesa e saiu. Nesse momento caiu a
ficha de que estávamos dentro de um dos sonhos de nossas vidas, realizando esse
sonho. Estávamos em uma cervejaria em Munique, com dois litros de cerveja em
nossa frente. Peço desculpas ao leitor abstêmio, pois este nunca entenderá o supremo
significado contido nessa cena. Somente o leitor pinguço e cervejuço é capaz de
me compreender, e é a você que me dirijo agora (enfia o dedo no cu e rasga,
abstemiozinho de merda): se você,apenas
lendo essas mal traçadas linhas, se identificou e partilhou de nossa emoção,
desejamos, do fundo da alma, que um dia você também realize esse sonho, e se
lembre que esse sonho foi alimentado um pouquinho aqui, no Mapas & Bússola.
Mas vamos parando com a viadagem...
Ao primeiro gole já estávamos
embriagados, muito mais pela euforia de estarmos ali que pelo álcool em si.
Tudo bem que devia ser umas 19:00 e nós estávamos somente com o café-da-manhã e
uns lanchinhos. Mas não demorou muito e o garçom trouxe a comida. Primeiro as
linguiças brancas nadando numa tigela de água morna, e o chucrute. Depois o
joelho-de-porco. Detalhe que o método tradicional de se comer a linguiça branca
é sorvendo-a como se fosse um sacolé (chup-chup, xodó, xibiu, paradinha... sei
lá quais são os diversos nomes que isso tem, nas diversas regiões brasileiras).
E foi assim, saboreando a tradicional comida da Baviera, que matamos nossas
canecas de Oktoberfestbier, a cerveja
que é produzida especialmente para a época da Oktoberfest. Canecas vazias, olhamos a carta de cervejas da casa e
fomos descendo a lista, só que com copos de 500 mL, pois tínhamos que poupar
nossos fígados para mais três dias de bebedeira.
– Waiter, two weiβbier, please.
Não demorou muito e lá estava ele
trazendo nossas cervejas de trigo, e junto com as cervejas ele trouxe um jovem
casal, perguntando se eles poderiam dividir a mesa com a gente. “Of course!” Aqui no Brasil isso seria
meio esquisito, mas lá é normal, então desencanamos. De mais a mais, eles não
entenderiam e não se intrometeriam em nossa conversa e nem nós na deles. Até
tentamos um contato em inglês, onde ficamos sabendo que eles moravam numa
cidadezinha do interior da Alemanha (não lembro qual), e estavam ali, como era
de se esperar, para a Oktoberfest,
mas o diálogo não passou muito disso.
Terminamos nossas cervejas de
trigo, olhamos o cardápio e pedimos a próxima da lista: Edelstoff. Nos decepcionamos um pouco com essa, não por ela ser
ruim (ao contrário, era até bem boa), mas por lembrar as nossas american lagers. Pô, nós não
atravessamos o Atlântico para beber Brahma, né!? – Perdão, Senhor! Eu sei que
uma Augustiner não é uma Brahma, é só
força de expressão.
Depois partimos para a Augustiner Dunkel, ou seja, cerveja
escura. Muito boa, por sinal. E depois, fechando a lista, pedimos uma tal de Radler. Ao fazermos esse último pedido o
garçom franziu a testa e perguntou se era aquilo mesmo que queríamos. “Sim,
queremos beber todas as cervejas disponíveis na casa.” Ele falou alguma coisa
que não entendi, ficou olhando pra nós e, diante de nossa mudez, se foi. Fiquei
encafifado com aquilo, e o nome “radler”
ficou martelando em minha cabeça... Já tinha lido sobre aquilo... Mas o que
era?... Daí, de repente, veio o estalo: PUTAQUEPARIU! Pra confirmar minhas
suspeitas me dirigi aos nossos amigos alemães e perguntei se “radler” era aquilo que eu estava pensando
que era. Eles confirmaram. PUTAQUEPARIU!!! Radler
não era o néctar dos deuses em forma de cerveja, era só metade cerveja + metade
refrigerante de limão. Que bela merda!!! Bebemos aquela miséria de golada,
pedimos a conta, pagamos, nos despedimos dos nossos amigos, e vazamos.
Saímos
da Augustiner quando começava a escurecer (devia ser lá pelas 21:00), e
foi baixando uma friaca da porra. Pensamos até em voltar pro hotel, mas Josi
estava bem agasalhada, com uma calça e um casaquinho, e eu, apesar de estar de
bermuda, estava protegido sob o sagrado manto Tricolor. Mas, na verdade, nada
disso foi determinante para não irmos pro hotel. O que contou mesmo foi que,
enquanto rodávamos pelas ruas do entorno da Marienplatz, avistamos um
barzinho (se fosse na Inglaterra seria um pub) da Paulaner. Ver
um bar da Paulaner em Munique, para dois halterocopistas como nós,
equivale à visão do Olho de Thundera nos céus do Terceiro Mundo pelos Thundercats.
Não podíamos nos esquivar do chamado: entramos!
O
boteco era maneiro e parecia ser pequeno, apesar dos seus dois andares. Havia
poucas mesas e a atmosfera era bem aconchegante, pois, diferentemente da tão
propalada frieza alemã, reinava uma certa euforia, acho que por conta da
proximidade da Oktoberfest e do jogo que passava na TV. Tomamos assento
em dois banquinhos rentes ao balcão e, oh!, pedimos as cervejas. De saída, duas
weiβbier, ou weissbier (lembre-se que em alemão o “β” tem som de “ss”). Cerveja de trigo, leigo leitor. Posso dizer que
temos, eu e Josi, um vício carinho muito grande pelas cervejas de trigo.
E foi justamente uma Paulaner Hefe-Weiβbier Naturtrüb a primeira cerveja
alemã que tomamos na vida, em meados da década passada, em um barzinho de Vila
Velha – ES. Mas voltando a Munique... Ficamos ali no balcão, bebendo e
conversando sobre as impressões daquele dia tão intenso, e que ainda não havia
terminado. Depois da cerveja de trigo pedimos a especial da época da Oktoberfest.
Que maravilha! Como é bom beber cerveja de verdade, e não uma solução de suco
de cevada fermentado diluído em água com gás. E a conversa rolava naturalmente,
duas almas felizes num patamar alterado de percepção, onde a alegria se torna
um estado necessário, intrínseco à própria existência.
Caramba, dileto
leitor! estava pensado nessas últimas palavras que escrevi... Ficou bonito,
hein?! Que belas palavras pra dizer que estávamos bêbados! Questões de forma e
conteúdo... É, mas essa beleza foi quebrada por um chamado fisiológico
premente: meu epitélio pseudo-estratificado estava em seu grau máximo de
distensão (essa foi pra galera de Viçosa. Lembram das aulas de histologia com
Isabel, A Louca?) (para o leitor que não teve o privilégio de ver A Louca em
ação: minha bexiga estava estourando!), pois não me lembro de ter ido ao
banheiro na Augustiner. O banheiro ficava no segundo andar.
Putaquepariu! Ia ter que subir as escadas. Subi catando cavaco, mas subi. Lá em
cima, no corredor, uma risonha mocinha ficava sentada apontando graciosamente o
caminho do banheiro. Devolvi-lhe o sorriso, entrei, mijei (mijei pra caralho,
parecia um camelo!... na verdade a analogia está incorreta, pois camelos não
devem mijar muito, para poupar água... mas, ah! vocês entenderam...), balancei,
e fui lavar as mãos. Devo ter ficado uns cinco minutos tentando fazer a
torneira da pia funcionar. Girava, apertava, passava a mão em busca de algum
sensor, pisava o chão sob a pia pra ver se havia alguma válvula... Nada! Voltei
pro balcão com a mão mijada. No caminho passei novamente pela risonha mocinha,
e novamente devolvi-lhe o sorriso, mas o sorriso dela se desfez e foi trocado
por uma carranca assim que passei por ela. Eu, hein, vai saber!...
Conversa vai,
conversa vem, no meio da conversa assoviei, como se fosse uma exclamação sobre
algo que Josi havia dito. Nada demais, mas saquei que a garçoa do balcão, que
não era nem um pouco simpática, achou que eu a estava chamando, e fez uma cara
pior do que a que lhe era peculiar. Fingi que nada havia acontecido – e não
havia mesmo – e continuamos conversando. Uns cinco minutos depois lá veio a
garçoa com uma cara-de-cu-com-cãimbra perguntar o que era que eu queria. Aí
botei em prática meu lado “artista”: olhei pra ela como se não tivesse
entendido, ela repetiu a pergunta, e eu disse que não a havia chamado nem
pedido nada, hehehehehe! Se fudeu, cara-de-bunda do inferno! Mas daí em diante
tomei cuidado (ou tentei) com essas coisas de assovio. O povo lá não gosta,
acho que é considerado falta de educação grave chamar alguém assoviando. Outra
coisa que acho que os alemães não devam gostar muito é quando alguém estica o
braço com a palma da mão voltada pra frente. Sacou, leitor? Tipo um Heil,
Hitler! Pois é, e eu tenho o costume de pedir desculpas desse jeito, só que
ao invés da saudação nazista, geralmente eu digo um “foi mal”, ou “scusi”,
ou “sorry”, dependendo do lugar. Mas alemão traumatizado não quer saber
o que você está dizendo, basta a menor alusão ao nazismo para os semblantes se
fecharem (mais). E foram muitos os esbarrões e os pedidos automáticos de
desculpas, na cidade lotada de turistas; e a cada vez Josi empalidecia, temendo
alguma reprimenda; e, passado o susto, me ameaçava de morte. Mas voltemos às
cervejas... Terminamos a especial da Oktoberfest e pedimos a Paulaner
Salvator, uma cerveja vermelha bock duplo-malte, top-mega-foda,
criada pelos monges para servir de alimento líquido durante o jejum da quaresma,
portanto uma cerveja mais adocicada, mais alcoólica e mais calórica. Resumindo:
uma delícia!!!
Emborcamos nossos
copos, pagamos, mas antes de sair uma mijadinha de segurança. Escada acima,
mocinha não-tão-sorridente, banheiro, mijada, balançada, torneira que faz hora
(dessa vez eu consegui, só não sei como), e na saída eu percebi que a mocinha
do corredor portava uma caixinha que continha umas cédulas e várias moedas. Daí
saquei a parada: o sorriso dela tinha preço. Quem ia ao banheiro pagava pelo
sorriso dela. Pelo menos foi isso que eu achei, pois não vi ela fazendo nada
mais que isso. Não limpava o banheiro, não ensinava para os burrões como a
torneira funcionava, e nem balançava o pinto das pessoas, portanto a gorjeta só
podia ser pelo sorriso. Porra! Não vou pagar pra uma pessoa ficar me mostrando
os dentes! Não paguei mesmo! Esses alemães devem achar que pessoas bêbadas são
pessoas idiotas. Na-na-ni-na, não com esse bebão aqui!
Contei da minha
descoberta pra Josi e saímos do bar rindo. Íamos tranquilos, caminhando em
lua-de-mel pelas ruas de Munique, numa fria noite de fim de verão, sob o
límpido céu da Baviera. Animados pelo álcool em nossas veias, até cogitamos a
possibilidade de vencermos, a pé, os quatro quilômetros que nos separavam do
hotel, apesar de não fazermos idéia da direção a seguir. Mas, devido ao frio,
quando passamos pela Marienplatz nos decidimos pelo metrô. E, o etílico
leitor há de convir, tudo fica muito mais fácil quando a gente está mamado! Foi
mó tranquilo operar a maquininha de tickets e achar o local do trem que
nos levaria para o hotel. Em instantes estávamos na Ostbahnhof, e de lá
para o hotel uma caminhada de cinco minutos. Quando chegamos em frente ao
hotel, ainda do lado de fora, percebemos que, à noite, o hall do hotel
se transforma num barzinho. E mesmo do lado de fora nossa visão seletiva
identificou que eles serviam Franziskaner, uma cerveja de trigo que já
conhecíamos e apreciamos muito, e que chamamos carinhosamente de “Francisca”.
– Bora beber uma?
– Ô!
E foi assim que nos vimos
sentados ao balcão tomando uma Francisca, em frente à porta da cozinha. E isso
despertou nossa fome, e pedimos uns sanduíches de queijo e presunto pra rebater
a cerveja. Daí a pouco aparece de dentro da cozinha uma funcionária do hotel
que ainda não havíamos visto. Ela passa por nós resmungando alguma coisa e eu
tive a nítida impressão de ser em português. Olhei pra Josi, que teve a mesma
impressão que eu, e que inclusive afirmava que a mulher havia falado “[...]
camisa do Flamengo”.
– Ah! não! Confundir o sagrado
manto do Fluzão com ***pano-de-chão do Exu não tem perdão! – tinha que tirar a
história a limpo: – Ô moça, você (além de cega) é brasileira?
E foi assim que conhecemos a
Ceres, uma carioca gente finíssima, que já morava na Alemanha há um tempo, cujo
pai é tricolor e capixaba de Conceição da Barra. Foi empatia à primeira vista.
Na verdade à segunda vista, pois no início não gostei de ela ter confundido a
camisa mais bonita do mundo com o ***trapo do adversário carniceiro, mas
perdoei-a. Ficamos ali conversando um tempão. Pedi outra Francisca, só que dunkel, e ela arranjou vários mapas e folders, onde ia nos explicando várias
coisas sobre Munique e os muniquenses, como a forma de utilizar os transportes
públicos, os pontos turísticos, os restaurantes e cervejarias, e o que agradava
e desagradava as pessoas na Alemanha. Marcamos inclusive de sairmos com ela na
noite seguinte. Sei que quando olhei o relógio já era mais de uma da matina, e
no outro dia teríamos que acordar cedo para aproveitar a cidade. Nos despedimos
e subimos para o quarto, para descansarmos desse dia em que caminhamos em um
dos infernos terrestres e pisamos onde o Demônio pisou, mas que, graças a Santo
Agostinho, São Paulo, São Francisco e a seus benditos monges cervejeiros,
pudemos exorcizar com 11 litros de cerveja benta. Amém!
***
Josi deixou explicitamente claro que não concorda com as expressões e
afirmações em destaque. Disse também que, se ela for responsável pela escrita
de algum capítulo, ou parte de algum capítulo desta narrativa, irá retaliar meu
comportamento ignóbil. Não preciso dizer qual é o time dela, né!?